sexta-feira, 27 de maio de 2022

Tinha uma pedra no caminho

 


Ouça o texto
                  É triste a visão de um viciado - Eu estava dirigindo meu carro, parei no sinal, dirigi meu olhar e pensamento para um pedinte que estava na sinaleira. Do vidro dos carros vê-se como lápides essas pessoas sem direção na vida - Chovia, fazia frio e ventava, senti a fome de chances no triste olhar daquela figura. A impressão que tive, era que nada naquele corpo franzino era seu, tudo nele estava dominado pela pedra que tudo acaba. Vi o craque empedrando o seu coração. Escutei seu lamento. Do céu caiam lágrimas em todos. Ele com uma mão no bolso e a outra no rosto enxugando o que não parava de pingar. A sinaleira fechada e ele pela janela molhada parecia uma ossada humana caminhando, sua expressão parecia a de uma criança chorando. Na rua gelada seu olhar petrificado parou em mim. Ele tirou a mão do rosto e veio em minha direção. Abri um pouco o vidro do carro, para ouvir o que ele queria certamente pedir. Curiosamente ele entregou-me um pedaço de papel. A sinaleira abriu, tive que arrancar com o carro e aquele esqueleto humano foi ficando para traz. No posto de gasolina próximo parei para abastecer e tomar um café. Olhei no papel úmido e quase desmanchando, absurdamente estava escrito a lápis um texto que me comoveu. O descrevo agora na íntegra.

- Veja a pedra mais uma vida expulsando. Não toquem em mim, tudo em mim vira pedra. É preto ou branco, tanto faz, para matar minha fissura, de violência sou capaz. O sangue vermelho pulsando em meus olhos me expulsa da sociedade e quero é a saciedade desse vício. Pedi mais de mil vezes, esmolas, e não era isso que eu queria. Lembro-me de criança chupando bico, agora chupo lata, tudo vira cachimbo. Chupo tudo, por um pega. Rastejo pelo chão, numa migalha me acho. Não me junto a ninguém, sou um defunto. Não me olho no espelho faz tempo, tenho medo de defunto. O vício é de aço, me deixou em pedaços. Veja em meu corpo o resto do que sobrou daquela criança. Não me toque, tudo vira pedra. Desse destroço que de mim restou, não preciso mais nada contar. As correntes de meus desatinos formaram a correnteza que me leva para onde não quero e nem posso voltar, não sei mais não consigo nem pensar. Estou no chão. Tudo está perdido. Que sinos são esses? Que loucura. Uma doçura no olhar em relação a mim queria ver em você. Chega de tanta amargura. É a real, estou perdido. - Este texto foi um poeta que por mim escreveu, disse que o escutou frase a frase em meu olhar de dor. Desde então, distribuo no sinal este papel com o texto. Caso outro dia, em uma sinaleira, encontrar alguém com olhar perdido, talvez seja eu, isso não importa, tente descrever o que sente sobre o que vê e entregue para alguém ler. Nunca me esquecerei desse acontecimento, acho que virei poeta também. Foi um poeta que comigo chorou...Ou fui eu? Sei que o poeta comprovou que o amor existe. Estou triste, mas diferente.


Figura acima do texto de Ósi Luís - A Ressureição de Matthias Grunewald


 

Nenhum comentário: